Uma questão sobre deserção: Caso Cid Moreira
- Andreza Jacobsen

- 8 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de out. de 2024
Na semana passada, a morte de Cid Moreira, renomado apresentador e influenciador digital brasileiro, aos 97 anos, deixou familiares e conhecidos profundamente impactados. O apresentador construiu uma carreira brilhante na história da comunicação brasileira; no entanto, suas relações familiares eram marcadas por desavenças. Assim como ocorre em muitas famílias, os famosos também enfrentam impasses quando o tema é familiar. Nesse contexto, o que mais impressionou a mídia, seus fãs e, principalmente, seus filhos, Rodrigo e Roger Moreira, foi a deserdação relacionada ao patrimônio do pai. A revelação do testamento público trouxe à tona as ações que um pai pode tomar contra um filho, caso este não cumpra os deveres esperados. Mas o que, exatamente, o testamento declarou? A questão revelada foi a deserdação dos filhos Rodrigo e Roger em relação à herança de Cid Moreira, conforme divulgado pelo advogado da viúva, Fátima Sampaio Moreira.
Após o falecimento do apresentador, os filhos solicitaram a abertura do inventário, mesmo diante de um histórico de desentendimentos familiares e de uma disputa judicial anterior que já havia sido resolvida. Rodrigo e Roger, ao requererem a abertura do inventário, solicitaram acesso integral ao testamento que, de acordo com o advogado responsável, avaliava o patrimônio de Cid Moreira em aproximadamente R$ 60 milhões. Os filhos alegaram ter sofrido danos psicológicos devido ao relacionamento conturbado com o pai durante seu segundo casamento. A defesa da viúva, Fátima, considerou o pedido de abertura do inventário "lamentável e inoportuno".
O advogado de Fátima revelou que Cid Moreira expressou claramente sua intenção de deserdar os filhos, fundamentando-se na indignidade, conforme previsto pelo Código Civil brasileiro. A desavença familiar se agravou em 2021, quando Rodrigo e Roger tentaram, por meio de uma ação judicial, interditar o pai, alegando que Fátima estaria se beneficiando indevidamente do patrimônio dele. Em resposta, Cid Moreira defendeu sua sanidade mental e acusou os filhos de estarem movidos por interesses financeiros.
No que tange ao processo de deserdação, é importante compreender que, de acordo com o Código Civil brasileiro, a deserdação é a manifestação formal do autor da herança de excluir um herdeiro da sucessão, por meio de disposição testamentária, em razão de atos que configurem indignidade ou outros comportamentos ofensivos à pessoa do testador ou de seus próximos. A deserdação deve ser realizada por testamento, com a indicação clara da causa que a justifica. Segundo o artigo 1.814 do Código Civil:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra sua honra, ou a de seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
A deserdação é um instituto jurídico específico que afeta exclusivamente os herdeiros necessários, conforme o artigo 1.961 do Código Civil: "Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão”. A deserdação tem caráter de penalidade civil ao herdeiro, que resulta na exclusão da sucessão pela prática de atos ofensivos que justifiquem tal medida, como ocorre com a indignidade. As causas que motivam a deserdação dos herdeiros necessários, previstas no artigo 1.961, repetem-se no Código Civil, indicando faltas graves e sua consequente punição patrimonial, conforme os artigos subsequentes.
Outros artigos, como o 1.962 e seguintes, autorizam a deserdação com base em situações específicas, como ofensas físicas, injúrias graves e desamparo do ascendente ou descendente em estado de vulnerabilidade, reforçando que tais condutas, além de ofensivas no âmbito familiar, também são puníveis na esfera criminal.
*Art. 1.962*. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
I - ofensa física;
II - injúria grave;
III - relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
A deserdação só é válida se as causas forem expressamente indicadas no testamento, conforme o artigo 1.964 do Código Civil. O artigo 1.965, por sua vez, estabelece que o ônus da prova sobre a causa da deserdação recai sobre o herdeiro instituído, ou sobre aquele a quem a deserdação beneficiar.
Portanto, as causas legais da deserdação aplicam-se exclusivamente aos herdeiros necessários, pois, tendo eles direito à legítima, é necessário um motivo grave para que sejam excluídos da herança. Quanto à parte disponível da herança, o testador pode dispor dela livremente, sem a necessidade de justificar a exclusão de qualquer herdeiro.
O caso de Cid Moreira ilustra claramente a aplicação da deserdação, conforme prevista no Código Civil brasileiro, quando os filhos cometem atos de injúria, fraude ou outros comportamentos que comprometem o bem-estar do ascendente. Nesse caso, o ascendente tem pleno direito de excluir esses descendentes da herança. O ordenamento jurídico brasileiro oferece legitimidade tanto aos ascendentes quanto aos descendentes para excluir da sucessão aqueles que, por sua conduta, demonstram ser indignos de receber o patrimônio.
Diante deste episódio, fica evidente que o Direito, além de se preocupar com o bem-estar nas relações familiares, estabelece que as pessoas devem arcar com as consequências de seus atos, especialmente quando há abuso ou usurpação de poder sobre aqueles que, em vida, demonstraram capacidade de cuidar de si e de outros. Portanto, a proteção do patrimônio para quem respeita as boas relações familiares é uma forma de combater uma sociedade cada vez mais marcada por conflitos entre pais e filhos. O ato de deserdar, por fim, reforça o compromisso com a autonomia e a dignidade daqueles que, em vida, prezaram pelo respeito e pela boa-fé nas relações familiares.
Núcleo Científico Interno - (NCI)
Dra. Andreza da Silva Jacobsen
Dr. Edmundo Rafael Gaievski Junior
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm?ref=blog.suitebras.com. Acesso em: 08 out. 2024.
MOUTINHO, Maria Eduarda. Testamento deixado por Cid Moreira deserda filhos; saiba os motivos. Portal Terra, 2024. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/testamento-deixado-por-cid-moreira-deserda-filhos-saiba-os-motivos,4865f31a3f2d656bfcdb21234f1f706ab0x5w8ts.html. Acesso em: 08 out. 2024.
OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Indignidade e deserdação. Perfil dogmático e aspectos atuais relevantes. Escola Paulista da Magistratura. Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil, vol. 2, p. 1032-1034, 2018. Disponível em: https://epm.tjsp.jus.br/Publicacoes/ObrasJuridicas. Acesso em: 08 out. 2024.

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