Crimes Virtuais e Jurisprudência: Como a Justiça está lidando com o Mundo Digital
- Andreza Jacobsen
- 16 de dez. de 2024
- 7 min de leitura
Com a transformação digital permeando todos os aspectos da vida contemporânea, os crimes virtuais se tornaram uma das maiores preocupações para indivíduos, empresas e governos. A rápida evolução tecnológica tem criado desafios significativos para o sistema jurídico, que precisa adaptar-se continuamente para lidar com delitos cibernéticos.
Os crimes virtuais englobam uma ampla gama de condutas ilícitas realizadas no ambiente digital, como fraudes eletrônicas, roubo de identidade, invasão de sistemas, disseminação de conteúdos ilícitos e violação de privacidade. Com a globalização da internet, muitos desses delitos transcendem fronteiras, complicando sua investigação e punição, principalmente no que tange as provas e identificação dos autores.
No Brasil, a Lei nº 12.737/2012 (conhecida como Lei Carolina Dieckmann) foi um marco inicial no enfrentamento aos crimes digitais, tipificando delitos como invasão de dispositivos informáticos. Outro avanço significativo foi a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que estabeleceu direitos e deveres de usuários e provedores, além de regulamentar o uso da internet com foco na privacidade e segurança dos dados. Por fim, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) veio reforçar a proteção de informações pessoais e a responsabilização de empresas por falhas de segurança.
Quanto à jurisprudência e a aplicação da justiça é desempenhado um papel essencial no tratamento de crimes virtuais, pois muitas vezes faltam normativas específicas para lidar com situações inéditas no ambiente digital. Os tribunais brasileiros têm construído entendimentos importantes sobre diversos aspectos, como:
Responsabilidade de Provedores de Internet
Casos de ofensas e discursos de ódio em redes sociais têm gerado debates sobre até que ponto os provedores de serviços online devem ser responsabilizados. A jurisprudência tem oscilado entre a liberdade de expressão e a necessidade de proteção contra abusos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos ilícitos quando notificadas e não tomam medidas para removê-los, conforme previsto no Marco Civil da Internet.
Conforme o entendimento jurisprudencial TJMS. Nº 0800167-37.2020.8.12.0013 de Jardim publicado em 11/05/2021:
Ementa: RECURSO INOMINADO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C TUTELA ANTECIPADA C/C DANOS MORAIS – PROVEDOR DE INTERNET - CONTA DE E-MAIL HACKEADA – TENTATIVA ADMINISTRATIVA DE RESOLUÇÃO DO PROBLEMA – UTILIZAÇÃO DO E -MAIL PARA FINS DE TRABALHO – POUCO CASO DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO – DANOS MORAIS DEMONSTRADOS – RECURSO DESPROVIDO A empresa Recorrente não demonstrou boa vontade na resolução administrativa do conflito, uma vez que a conta de e-mail que a consumidora mantinha para fins de trabalho foi hackeada e mesmo com várias reclamações, nada foi feito, necessitando intervenção judicial. Considera-se ineficiente o serviço prestado, posto que a Recorrente aufere lucro em vender seus serviços e não busca desenvolver mecanismos para dificultar a prática de crimes virtuais. O dano moral consiste em um prejuízo de ordem extrapatrimonial suportado pelo indivíduo, apto a lhe causar desconforto comportamental, em decorrência de uma ofensa injusta a seus interesses. Para a configuração do dano moral, faz-se necessária a concorrência dos seguintes requisitos: fato lesivo voluntário causado pelo agente; negligência, imperícia ou imprudência e nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente, evidenciados no caso em apreço. Dessa feita, com o desenrolar da instrução processual, restou demostrada a existência de nexo de causalidade suficiente entre a conduta da empresa e os danos alegados, de modo que se mostra correta a indenização concedida. Na quantificação do dano moral foram considerados os critérios de razoabilidade e da proporcionalidade, razão pela qual o quantum fixado mostra-se justo. Sentença mantida por seus próprios fundamentos.
Provas Digitais
A aceitação e análise de provas digitais têm gerado debates, principalmente quanto à sua autenticidade e validade. Tribunais têm exigido perícias técnicas em materiais digitais para evitar fraudes ou manipulações.
Recentemente, casos envolvendo mensagens de aplicativos como WhatsApp têm consolidado entendimentos sobre a necessidade de autorização judicial para acessar conteúdos privados, protegidos pelo sigilo constitucional.
De acordo com a fundamentação explanada pelo TJ-SC - APELAÇÃO CRIMINAL: APR 50045047720208240079 publicada em 27/04/2022:
Ementa: CRIME DE AMEAÇA ART. 147 , CAPUT, DO CÓDIGO PENAL ). CONDENAÇÃO NA ORIGEM. PLEITO DEFENSIVO PELA ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. PROMESSA DE CAUSAR MAL INJUSTO E GRAVE SUPOSTAMENTE PERPETRADA POR MEIO DE APLICATIVO DE MENSAGERIA (WHATSAPP). PROVA MATERIAL LIMITADA À JUNTADA DE CAPTURA DE TELA FORNECIDA PELA VÍTIMA. INSUFICIÊNCIA. VIOLAÇÃO DA METODOLOGIA DE AQUISIÇÃO VÁLIDA DA MATERIALIDADE NOS CRIMES QUE DEIXAM VESTÍGIOS ( CPP , ART. 158 ). REGRAS DE DEFINIÇÃO E TRATAMENTO INOBSERVADAS. O "PRINT SCREEN" É INSUFICIENTE À MATERIALIDADE NECESSÁRIA À EXISTÊNCIA E À VALIDADE DA PROVA DIGITAL NO ÂMBITO CRIMINAL. REGISTRO QUE NÃO PERMITE NEM SEQUER A IDENTIFICAÇÃO DO INTERLOCUTOR. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. ABSOLVIÇÃO NOS TERMOS DO ART. 386 , INCISO II , DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO. (TJSC, APELAÇÃO CRIMINAL n. 5004504-77.2020.8.24.0079, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, Terceira Turma Recursal - Florianópolis (Capital), j. Wed Apr 27 00:00:00 GMT-03:00 2022).
Crimes de Invasão de Privacidade e Extorsão
Casos envolvendo o vazamento de dados e chantagem por meio de ransomware ou disseminação de conteúdos íntimos geram precedentes importantes. Em diversos julgados, tribunais têm considerado tais crimes como agravados quando resultam em danos psicológicos graves às vítimas.
Segundo o entendimento jurisprudencial do TJ-GO - APELACAO CRIMINAL: APR 4740290720118090175 publicado em 13/03/2017:
Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE EXTORSÃO - AMEAÇA DE DIVULGAÇÃO DE FOTOS ÍNTIMAS NA INTERNET - PALAVRA DA VÍTIMA - HARMONIA COM O RESTANTE DA PROVA - COMPROVAÇÃO DOS FATOS - ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. I - Se a vítima, em todas as oportunidades em que foi ouvida, confirmou a formalização de ameaças pelo apelante, visando a obtenção de vantagem econômica indevida, estando suas declarações em harmonia com o restante da prova, resta confirmada a prática do crime de extorsão, sendo inviável a absolvição pretendida. DESCLASSIFICAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AMEAÇA. EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES II - Não há que se cogitar a desclassificação, visto que plenamente caracterizada a extorsão, que se consuma, como é cediço, quando o autor constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, o que ocorreu no caso. DE OFÍCIO. REDIMENSIONAMENTO DA PENA PECUNIÁRIA. III - Constatado equívoco na fixação da pena pecuniária, impõe-se sua readequação. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. DE OFÍCIO, REDUZIDA A PENA PECUNIÁRIA.
Fraudes Eletrônicas e Comércio Digital
Crimes como clonagem de cartões, criação de sites fraudulentos e fraudes em transações bancárias digitais têm levado ao entendimento de que instituições financeiras devem adotar sistemas de segurança robustos e, em alguns casos, arcar com prejuízos causados aos clientes.
Conforme o TJ-PR - Apelação: APL 19649820218160154 Santo Antônio do Sudoeste 0001964-98.2021.8.16.0154 (Acórdão) publicado em 23/11/2022:
Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE TENTATIVA DE ESTELIONATO QUALIFICADO POR FRAUDE ELETRÔNICA E MAJORADO POR TER SIDO PRATICADO CONTRA VULNERÁVEL. ARTIGO 171 , § 2º-A E § 4º , C/C ARTIGO 14 , INCISO II , AMBOS DO CÓDIGO PENAL . SENTENÇA CONDENATÓRIA. INSURGÊNCIA DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA OU AUSÊNCIA DE DOLO DO RÉU. NÃO ACOLHIMENTO. MATERIALIDADE E AUTORIA DO DELITO DEVIDAMENTE DEMONSTRADAS — CONJUNTO PROBATÓRIO QUE EVIDENCIA O DOLO DO RÉU NA PRÁTICA DO CRIME DE ESTELIONATO — DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS MILITARES E DA VÍTIMA UNÍSSONOS E COERENTES NAS DUAS FASES DA PERSECUÇÃO — RÉU QUE, EM CONLUIO COM TERCEIROS, A FIM DE ADQUIRIR UMA MOTOCICLETA, ENTROU EM CONTATO COM A VÍTIMA E ENVIOU COMPROVANTE DE TRANSFERÊNCIA ELETRÔNICA FRAUDULENTA — MENSAGENS DE WHATSAPP QUE DEMONSTRAM O PLANEJAMENTO CRIMINOSO. PLEITO DE ALTERAÇÃO DO REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA. NÃO ACOLHIMENTO. REINCIDÊNCIA, MAUS ANTECEDENTES E CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO QUE IMPEDEM A FIXAÇÃO DE REGIME MAIS BRANDO — REGIME INICIAL FECHADO MANTIDO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJPR - 3ª Câmara Criminal - 0001964-98.2021.8.16.0154 - Santo Antônio do Sudoeste - Rel.: DESEMBARGADOR MARIO NINI AZZOLINI - J. 17.11.2022)
Apesar dos avanços, a justiça ainda enfrenta desafios significativos para lidar com o mundo digital:
Falta de Harmonização Internacional: Muitos crimes digitais envolvem múltiplos países, tornando complexa a aplicação de leis e a cooperação jurídica entre nações.
Dificuldades Técnicas: A evolução constante das tecnologias e das técnicas utilizadas por criminosos supera a capacidade de atualização de muitos sistemas jurídicos.
Capacitação de Agentes Públicos: Ainda há lacunas na formação de juízes, promotores e advogados quanto aos aspectos técnicos dos crimes virtuais.
Ritmo Lento do Processo Legislativo: Enquanto a tecnologia avança rapidamente, a criação de leis é um processo demorado, deixando muitas áreas sem regulamentação adequada.
O combate aos crimes virtuais exige uma abordagem multifacetada que combine legislação moderna, cooperação internacional e capacitação técnica. No Brasil, iniciativas como o Projeto de Lei 2.630/2020 (Lei das Fake News) visam abordar novos desafios, como a disseminação de informações falsas.
Além disso, o uso de tecnologias como inteligência artificial e big data pode ajudar o judiciário a identificar padrões de crimes digitais e acelerar investigações. Contudo, é essencial equilibrar o uso de tais ferramentas com o respeito à privacidade e aos direitos fundamentais.
A justiça tem avançado no enfrentamento aos crimes virtuais, mas ainda há um longo caminho a percorrer. A criação de jurisprudências sólidas e atualizadas é fundamental para responder à complexidade do mundo digital. Somente com um sistema jurídico adaptável, aliado à cooperação global e ao uso de tecnologias avançadas, será possível mitigar os impactos dos crimes digitais e proteger empresas e cidadãos no ambiente virtual.
Núcleo Científico Interno - (NCI)
Dra. Andreza da Silva Jacobsen
Dr. Edmundo Rafael Gaievski Junior.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12737.htm#art2. Acesso em: 16 dez. 2024.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14020.htm. Acesso em: 16 dez. 2024.
Tribunal de Justiça de Goiás. APR: 04740290720118090175, Relator: Des. Avelirdes Almeida Pinheiro de Lemos, Data de Julgamento: 26/01/2017, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ 2227 de 13/03/2017. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso em: 16 dez. 2024.
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. RI: 0800167-37.2020.8.12.0013, Jardim, Relator: Juiz Márcio Alexandre Wust, Data de Julgamento: 07/05/2021, 2ª Turma Recursal Mista, Data de Publicação: 11/05/2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso em: 16 dez. 2024.
Tribunal de Justiça do Paraná. APL: 00019649820218160154, Santo Antônio do Sudoeste 0001964-98.2021.8.16.0154 (Acórdão), Relator: Mario Nini Azzolini, Data de Julgamento: 17/11/2022, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 23/11/2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso em: 16 dez. 2024.
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. APR: 50045047720208240079, Florianópolis, Relator: Alexandre Morais da Rosa, Data de Julgamento: 27/04/2022, 3ª Turma Recursal - Florianópolis (Capital). Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso em: 16 dez. 2024.
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