A responsabilidade civil dos pais em casos de negligência afetiva
- Andreza Jacobsen

- 4 de dez. de 2024
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A compreensão da família no Direito, ao longo da história da humanidade, foi sendo transformada, pois, família que até então era patriarcal e matrimonial, deu lugar a novos arquétipos familiares que passaram a ser amparados pela legislação. Nesse sentido, o Direito foi avançando no sentido de abarcar mais proteção nas relações familiares, em destaque para os mais vulneráveis, a saber, a criança e o adolescente.
A Constituição Federal, Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxeram uma série de princípios norteadores na proteção da criança e do adolescente nos vínculos familiares o que resultou em alguns deveres parentais dos pais em relação aos seus filhos, essenciais na formação física e psicológica.
A vulnerabilidade do filho menor, é reciprocamente um dever e um limite de responsabilidade dos pais. Como dever, faz surgir deveres concretos de tutela por parte dos pais, que devem garantir ao filho menor a proteção e os cuidados necessários para o seu melhor desenvolvimento, haja vista a impossibilidade desse filho suprir sozinho as suas necessidades, gerando sua total dependência com relação aos seus genitores. Cabe ressaltar que o exercício da autoridade parental não se restringe a prestação de alimentos, mas também é a assistência educacional, cultural, afetiva e moral (MADALENO, 2022, p. 789).
No caso de deveres não cumpridos a responsabilidade civil dos pais em casos de negligência afetiva é um tema complexo que envolve questões jurídicas, éticas e sociais. Trata-se da análise da possibilidade de os pais serem responsabilizados civilmente pelo abandono afetivo de seus filhos, reconhecendo a importância do afeto no desenvolvimento da personalidade e no bem-estar emocional.
A responsabilidade civil por abandono afetivo tem como base os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal) e da proteção integral à criança e ao adolescente (art. 227 da Constituição). O Código Civil também reforça essa ideia, especialmente no art. 186, que prevê a reparação de danos causados por conduta dolosa ou culposa.
O dever de cuidado e afeto é parte integrante do poder familiar, conforme o art. 1.634 do Código Civil, que impõe aos pais a obrigação de criar, educar e proteger os filhos. A negligência afetiva, por sua vez, configura um descumprimento desse dever.
A negligência afetiva pode gerar um dano de natureza moral, pois a falta de vínculo, apoio emocional e atenção pode impactar negativamente a formação psicológica do indivíduo, causando traumas, baixa autoestima e dificuldades nos relacionamentos interpessoais. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu, em casos emblemáticos, que o abandono afetivo pode ensejar indenização por dano moral, desde que comprovados o dano, o nexo causal e a conduta omissiva.
Conforme jurisprudência: STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 1887697 RJ 2019/0290679-8 - Acórdão publicado em 21/09/2021:
Ementa: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. APLICAÇÃO DAS REGRAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES. OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS E PERDA DO PODER FAMILIAR. DEVER DE ASSISTÊNCIA MATERIAL E PROTEÇÃO À INTEGRIDADE DA CRIANÇA QUE NÃO EXCLUEM A POSSIBILIDADE DA REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS. PRESSUPOSTOS. AÇÃO OU OMISSÃO RELEVANTE QUE REPRESENTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE CUIDADO. EXISTÊNCIA DO DANO MATERIAL OU MORAL. NEXO DE CAUSALIDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS NA HIPÓTESE. CONDENAÇÃO A REPARAR DANOS MORAIS. CUSTEIO DE SESSÕES DE PSICOTERAPIA. DANO MATERIAL OBJETO DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO DE ALIMENTOS. INVIABILIDADE DA DISCUSSÃO NESTA AÇÃO. 1- Ação proposta em 31/10/2013. Recurso especial interposto em 30/10/2018 e atribuído à Relatora em 27/05/2020. 2- O propósito recursal é definir se é admissível a condenação ao pagamento de indenização por abandono afetivo e se, na hipótese, estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil. 3- É juridicamente possível a reparação de danos pleiteada pelo filho em face dos pais que tenha como fundamento o abandono afetivo, tendo em vista que não há restrição legal para que se apliquem as regras da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares e que os arts. 186 e 927 , ambos do CC/2002 , tratam da matéria de forma ampla e irrestrita. Precedentes específicos da 3ª Turma. 4- A possibilidade de os pais serem condenados a reparar os danos morais causados pelo abandono afetivo do filho, ainda que em caráter excepcional, decorre do fato de essa espécie de condenação não ser afastada pela obrigação de prestar alimentos e nem tampouco pela perda do poder familiar, na medida em que essa reparação possui fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma, que é o descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. 5 - O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho. 6- Para que seja admissível a condenação a reparar danos em virtude do abandono afetivo, é imprescindível a adequada demonstração dos pressupostos da responsabilização civil, a saber, a conduta dos pais (ações ou omissões relevantes e que representem violação ao dever de cuidado), a existência do dano (demonstrada por elementos de prova que bem demonstrem a presença de prejuízo material ou moral) e o nexo de causalidade (que das ações ou omissões decorra diretamente a existência do fato danoso). 7- Na hipótese, o genitor, logo após a dissolução da união estável mantida com a mãe, promoveu uma abrupta ruptura da relação que mantinha com a filha, ainda em tenra idade, quando todos vínculos afetivos se encontravam estabelecidos, ignorando máxima de que existem as figuras do ex-marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex-filho, mantendo, a partir de então, apenas relações protocolares com a criança, insuficientes para caracterizar o indispensável dever de cuidar. 8- Fato danoso e nexo de causalidade que ficaram amplamente comprovados pela prova produzida pela filha, corroborada pelo laudo pericial, que atestaram que as ações e omissões do pai acarretaram quadro de ansiedade, traumas psíquicos e sequelas físicas eventuais à criança, que desde os 11 anos de idade e por longo período, teve de se submeter às sessões de psicoterapia, gerando dano psicológico concreto apto a modificar a sua personalidade e, por consequência, a sua própria história de vida. 9- Sentença restabelecida quanto ao dever de indenizar, mas com majoração do valor da condenação fixado inicialmente com extrema modicidade (R$ 3.000,00), de modo que, em respeito à capacidade econômica do ofensor, à gravidade dos danos e à natureza pedagógica da reparação, arbitra-se a reparação em R$ 30.000,00. 10- É incabível condenar o réu ao pagamento do custeio do tratamento psicológico da autora na hipótese, tendo em vista que a sentença homologatória de acordo firmado entre as partes no bojo de ação de alimentos contemplava o valor da mensalidade da psicoterapia da autora, devendo eventual inadimplemento ser objeto de discussão naquela seara. 11- Recurso especial conhecido e parcialmente provido, a fim de julgar procedente o pedido de reparação de danos morais, que arbitro em R$ 30.000,00), com juros contados desde a citação e correção monetária desde a publicação deste acórdão, carreando ao recorrido o pagamento das despesas, custas e honorários advocatícios em razão do decaimento de parcela mínima do pedido, mantido o percentual de 10% sobre o valor da condenação fixado na sentença.
Há divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a viabilidade de responsabilização civil em casos de abandono afetivo. Os argumentos favoráveis destacam: Valorização do afeto como elemento essencial das relações familiares; Função educativa da condenação, que reforça a importância dos deveres parentais. Por outro lado, críticos questionam: A dificuldade em quantificar o dano emocional; O risco de banalização do instituto da responsabilidade civil; A impossibilidade de obrigar alguém a amar, considerando o afeto como uma manifestação subjetiva.
Para que se configure a responsabilidade civil por negligência afetiva, são necessários os seguintes elementos: a) Ato ilícito ou omissão: a ausência de cuidado ou atenção por parte dos pais; b) Dano moral: impacto psicológico relevante no filho; c) Nexo causal: relação direta entre a conduta dos pais e o prejuízo sofrido.
A indenização por abandono afetivo é mais simbólica que reparatória, visto que o dano moral relacionado ao afeto é irreversível. Ela busca, acima de tudo, uma conscientização social sobre os deveres parentais e a proteção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
A responsabilização civil dos pais por negligência afetiva é um mecanismo jurídico que visa garantir o cumprimento dos deveres parentais e a efetivação do direito à dignidade e ao afeto. No entanto, é imprescindível que sua aplicação seja criteriosa, equilibrando os direitos e deveres das partes, para evitar distorções e injustiças.
Núcleo Científico Interno - (NCI)
Dra. Andreza da Silva Jacobsen
Dr. Edmundo Rafael Gaievski Junior
REFERÊNCIAS
AHN, Nathane Von; MARTINS, Ana Regina Costa. NEGLIGÊNCIA AFETIVA. A responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo. Novos Paradigmas do Direito de Família e Sucessões. Orgs. Carlos Eduardo Lamas; Ana Luiza Berg Barcellos; Victor de Abreu Gastaud; Alexandre Torres Petry. ESA/OAB- RS, Porto Alegre, 2023, p. 201-215.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.887.697 RJ 2019/0290679-8. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Recorrente : A M B P DE M; Recorrido: M G P DE M; Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado: 21/09/2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1286182074/inteiro-teor-1286182077?origin=serp. Acesso em: 04 dez. 2024.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm?ref=blog.suitebras.com. Acesso em: 04 dez. 2024.
MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.
ISBN 9786559644872. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559644872/. Acesso em: 04 dez. 2024

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